sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Sermão inútil

O bandido está sentado em frente a seu superior que se apoia sobre uma escrivaninha de escritório. Os dois estão sós mas o bandido, em nenhum momento, se atreve levantar. Todo o tempo não faz outra coisa senão encarar submisso seu superior ou olhar para baixo, para o chão, ou sua própria barriga. 
O superior parece ocupado. Acaba de guardar uns papéis que estão sobre a escrivaninha, enquanto inicia a conversa.
- Estou decepcionado. Não contigo. Comigo mesmo. Sabe? A gente julga as pessoas segundo uns certos critérios e acha que a lógica que nos levou a esses critérios está na cabeça de todo mundo e faz as pessoas concluírem e chegarem aos mesmos critérios que a gente. Entendeu? Pois é. Mas é errado. Aí eu descubro que as coisas que eu conclui de maneira tão direta não sé tão óbvio para os outros. Isso me deixa decepcionado.
Termina o que estava fazendo, e vira-se para a direção do bandido:
- Sabe os chimpanzés? Dizem que temos muitas semelhanças com eles. Dizem até que somos chimpanzés evoluídos. Eu, pessoalmente, acho que não. 
Levanta-se e dissimula um ar professoral
- Acho eles mais inteligentes. Pelo menos, mais inteligente que muito humano.
Toma num só gole o whisky que tinha colocado antes do bandido ser trazido rodeado por dois "agentes". Seus gestos são contidos, como num enorme esforço para controlar sua raiva.
- Sabe, eles vivem em bando. Cuidam muito bem um dos outros. E de suas crias, também. Todas elas são, supostamente, filhos do macho alfa. Sabe o macho alfa? Aquele que domina, o líder. Como você, lá no seu bando.
Caminha para o lado oposto de onde estava, em torno do bandido sentado.
- Na hora que uma fêmea está no cio, ninguém pode se aproximar dela. O macho alfa cuida para que todo mundo olhe, mas ninguém se aproxima dela até chegar o momento em que ela está receptiva. Ela solta um cheiro. Como as fêmeas do teu bando. Só que você não sente. A gente perdeu o senso de olfato, sabe?
Nesse momento o superior está fazendo um esforço quase incontido para se controlar. Seu postura é de completa dissimulaç˜ão.
- Depois, e só depois, - coloca o dedo em riste - que o macho montar - frisa a palavra 'montar' - a dita fêmea, os outros poderão fazer o mesmo. Digamos que é um ato generoso. Permite "tirar o atraso", se é que se pode falar isso de um chimpanzé. Diminui as tensões, permite um controle melhor do bando, sem gastar energia batendo ou matando, entendeu? Mas, garantindo a continuidade da linhagem. O primeiro é o que inocula, que engravida, entendeu?
Volta a andar, cruzando os braços de maneira a deixar as mãos sob as axilas. Para e levanta o indicador, como se passasse uma lição para uma classe fictícia de alunos de 2o. grau. 
- Mas tem um problema -  Volta a andar em volta da cadeira. Enquanto fala, solta o ar pelo nariz, devagar. Intensifica o ar professoral.
- Tem fêmea que fica passeando pelas bordas do território. Gosta de "explorar" - fala em tom irônico - novos ares. 
Enquanto fala 'ares', move as mãos pelo ar, em círculos. Novas fronteiras...
Para e fala de chofre:
- como as Jornadas nas Estrelas. Conhece? Já ouviu falar? Aquela série na televisão. Enfim... 
O bandido baixa a cabeça. Ele também faz um esforço muito grande para não reagir e explodir a cara do superior com o peso de vidro que está a sua frente, mas distante na escrivaninha.
- Aí essa fêmea fica prenha. Tudo bem. O bando continua na sua, o macho continua a montar as fêmeas no cio e a reservar seu quinhão mais nobre das frutas e outras iguarias que se tem à mão no rico território em que vivem.
Senta em uma poltrona no lado do amplo escritório em que há um ambiente mais "solene", forçando o bandido a virar a cabeça e encarar o superior no soslaio. Quando o encontra sentado na poltrona, volta a olhar para frente e medir a distância do peso na escrivaninha. O superior advinha suas intenções mas finge não perceber.
- Tudo se passa como se fosse mais um rebento a se adicionar ao bando. 
Recosta-se na poltrona e cruza os dedos das mãos uma contra a outra, depositando o conjunto sobre a barriga já um tanto pronunciada.
- Aí o rebento nasce. A femeazinha pari.
Levanta-se e vai até o bandido como para explicar mais amiúde. Faz o gesto de unir com os braços, gesticulando para dar mais clareza ao que fala.
- O bando cerca a fêmea, arranca o rebento da mão dela e batem nele até matar. Uma vez a morte constatada, deixam o rebento na frente da mãe arrasada, rouca de tanto gritar e voltam, cada um na sua atividade anterior. Ela, resignada, ainda chora o luto das mães, abandona o corpo para os predadores e outros oportunistas e segue o bando.
Para na posição inicial da conversa, semi-sentado sobre a escrivaninha, de frente para o interlocutor.
- É assim que tratam o caso de uma cocotinha que pode ter ido esfregar a bucetinha na cara de um otário do bando vizinho. Foi isso que ela fez? Eles não sabem, nem nós. Mas, e se? 'Just in case'... Entende inglês? Enfim...
As têmporas do bandido vibram.
- Por acaso eles vão atrás do otário que montou nela? Não, e sabe? Não é preciso usar muito a cabeça, ficar com dor de cabeça pensando em tentar saber por que.
Respira intensamente. Já quase não consegue controlar suas emoções. Volta a andar em torno da cadeira do bandido para ver se consegue.
- Prá quê? Um: arranjar uma guerra contra o grupo vizinho? Usar da força, gastar energia, matar gente. Matar dá trabalho, sabia?
O tom irônico se acentua sabendo do perfil de selvageria do bandido. Continua:
- Mas vai morrer gente dos seus também. Vai enfraquecer o grupo rival, mas vai enfraquecer o seu também. Aí, não só o outro, mas o próprio grupo vai ficar a mercê dos outros...
Fala 'outros' movendo as mãos, dando vida ao que fala.
- Os outros grupos vizinhos que há tempos estão olho no maná do território. Entendeu? Na selva, maná é para reis. Maná não é prá mané. 
Diz isso contente com o jogo de palavras que lhe pareceu genial.
Maná tem que defender com unhas e dentes. É preciso sobreviver. Dois: vão pegar quem? Vão punir o otário que eles nem sabem quem é? Eles podem pegar o otário errado. Então, além de arranjar uma guerra que vai custar muito caro ao bando, ainda podem punir o otário errado.
Nesse momento, perde a paciência e explode em cima do bandido, que permanece sentado.
- Otário, a gente não mata! Otário, a gente explora! Ele trabalha meses juntando dinheiro, juntando riqueza. Às vezes, anos! Depois vem e entrega o dinheiro, entrega a riqueza prá gente! 
Move os braços, como se puxasse alguma coisa no ar para si.
- Entrega tudo! E ainda ri! E ainda sai feliz! É assim que as coisas funcionam. 
Termina praticamente gritando.
- De que serve um otário morto! Hein? De que serve um otário, mooorrrto! Tudo por causa de uma cocotinha, de uma putinha que foi esfregar a bucetinha prá ele, um otário que estava passando! Prá quê, imbecil?
Reassume o ar calmo. Ainda dissimulando, assume o ar professoral e devagar, como se explicasse um conceito difícil.
- Mulher... - gesticula as mãos - se é que se pode chamar aquela bostinha de mulher, não se come, querido! Mulher a gente não fode! Mulher, a gente usa. Mulher é escada. Mulher é trampolim.
Usa os dedos para simular saltos para cima: poin, poin... 
- Quanto mais poderosa, mais alto a gente salta. Mas cuidado, se fizer fora do vaso, a coisa fica feia, a gente: poin e... - faz o gesto com a mão apontando para baixo - púúú...
Diz isso curvado de maneira a fazer seu rosto na altura do bandido. Sua expressão é como se falasse uma grande verdade.
- Sabe por que a gente come a mulher? Sabe por que a gente fode a mulher. Sabe por que a gente vai prá cama com a mulher? Filho, agora não precisa de foda. Filho a gente compra no supermercado de feto. Não precisa mais foder prá ter filho.
Fica em silêncio, como se esperasse a resposta que sabe que não vem. Aproxima-se e fala baixo, como se contasse um segredo.
- A gente come a mulher porque ela gosta! 
Agora ele anda para lá e para cá como se tivesse falando com seus botões.
- Fode a mulher bem. Satisfaz seus pedidos. Faz o que ela pede, o que ela não pede e o que ela pede para não fazer. Ela vai se apaixonar, vai ficar feliz, vai se achar a rainha de Sabá. Sabe a rainha de Sabá, da Bíblia, enfim... Ela vai ficar agradecida. E vai retribuir. Aí te coloca lá prá cima. Quer subir na vida? Quer ser rei? Conquista e fode bem, muito bem, uma poderosa, uma princesa. Você vai prô céu, comendo uma mulher. Não é prá ficar feliz, não é mostrar para os outros: hei, olha o "avião" que pousou no meu aeroporto. Nada! Deixa o avião para os trouxas, pros otários. O que eles querem é se divertir. Otário, seu nhô-nhô, ou sei lá que porra de apelido que te deram, otário é quem se diverte. Se diverte e paga, e gasta a grana com a gente, mané. Baranga repuxada é prôs otários, e prá trabalhar prá gente. Mulher a gente usa. Tem que ser poderosa, malandro. A gente tem que ralar prá chegar. Tem que ser poeta, tem que mandar flores, tem que falar o que ela quer ouvir. Não menospreze o poder de uma mulher, eu digo, mu---lher apaixonada.
Levanta o corpo e assume a postura de irritado. Serve-se de mais whisky.
- Agora: vem você e queima no 'micro-ondas' um otário só porque comeu a cocotinha que foi se esfregar com ele. O que é? Tá apaixonado, otário? Quer mostrar que é poderoso?
Aperta o botão do aparelho na escrivaninha. Quase que imediatamente entra um sujeito de terno, tipo segurança.
- Leva essa coisa daqui. Nem sei porque estou falando com esse traste. Já vi que ele não serve prá nada mesmo.
...........
No descampado vê-se uma casinha longe, muito longe. É o único sinal de civilização. O 'agente', um branco que usa um chapéu para disfarçar o vitiligo que toma a região em torno da boca, arma o fuzil. O bandido tenta regatear:
- Tu podia me livrar essa. Eu sumo e o patrão pensa que o serviço foi feito.
- Tá perdendo tempo para prestar conta com o divino. Teu relógio tá andando, malandro.
- Qualé, pato. Não vai considerar os favores, os arranjos que o gentileza aqui garantiu prôs seus?
- Tu sabe que não posso fazer nada. Sou pau mandado.
- Vai negar a origem?
- Vai querer me levar junto, é? Tu é que está sendo egoísta. Afunda mas não leva os outros.
- Tu é que não presta, mesmo. Já dava o serviço. Eu é que tinha que ter te manjado. Desde o início.
O diabo-louro armou o fuzil e apontou.
- Última chance. Pede perdão ao lá de cima agora, ou vai direto passar a eternidade com o diabo.
O bandido, rindo:
- Onde é que tu vai quando chegar tua hora, então, malandro?
Foram suas últimas palavras.

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